Máscara Neutra



O começo da jornada: a máscara neutra

"Quem olha para fora, sonha e quem olha para dentro, acorda." (Carl Gustav Jung)

Vale lembrar que no teatro, com o surgimento do gênero literário, a máscara é praticamente abolida do cenário europeu, tornando-se objeto de cena e para as artes plásticas, um objeto estético. Seu retorno se dá apenas nas primeiras décadas do século XX, devido uma série de fatores. Um deles é a arte abstrata, trazendo máscaras africanas para Europa, por artistas como Pablo Picasso. Outro fenômeno é a redescoberta do corpo, marco de um novo olhar sobre a corporeidade no renascimento dos exercícios físicos, na ascensão do esporte, no advento da cronofotografia (precursora do cinema), na dança, entre outros (SABINO. 2006: 13).

No início do século XX, houve à volta à máscara. As razões foram várias. Principalmente influiu a descoberta da arte primitiva africana e sua assimilação por artistas europeus, os dadaístas, os cubistas e futuristas. O rosto passou a ter, na pintura, uma relação diferente com o corpo. Também influíram os contatos com o Teatro Nô do Japão, com Bali e Java. Outra influência é atribuída, por Denis Bablet, ao ressurgimento do esporte no final do século XIX. Segundo ele, o retorno dos jogos olímpicos em 1896, provocou uma conscientização do corpo. Essa preocupação se refletiu na arte, como se pode ver nas esculturas de Rodin e na dança de Isadora Duncan. Houve como que uma descentralização do corpo humano, o rosto perdeu sua hegemonia e passou a ser uma simples parte do todo. (AMARAL, 1991: 51).



Jacques Copeau (1879-1949) foi um dos responsáveis pela volta da máscara, agora como instrumento pedagógico, já que a considerava essencial para exteriorizar os conflitos internos inerentes ao drama, além de proporcionar ao ator uma certa neutralidade física e mental que deveria ser seu ponto de partida. No seu pensamento a máscara, junto com o palco nu, sem cenário ou figurino, aumentaria a presença do ator, que direcionaria todo foco da cena para si. A máscara possibilitou que um novo ator corporal florescesse. Os alunos de Copeau utilizavam máscaras sem expressão, no início utilizando um pano cobrindo a face e o corpo com o mínimo de vestimenta possível.



Segundo um testemunho de Saint-Denis (1897-1971) faculta-se a um improviso de Copeau à utilização da máscara como instrumento de treinamento. Uma jovem atriz do Vieux  Colombier não conseguia expressar os sentimentos de sua personagem através das ações físicas. Cansado de esperar que ela relaxasse, Copeau colocou um lenço sobre sua face e pediu para que ela repetisse a cena. Inspirado por tal incidente nasceu à exploração do trabalho com a máscara. Ao isolar o rosto, o corpo  busca alternativas para expressar a emoção necessária daquilo que ser quer representar, com o  objetivo de desenvolver outras possibilidades corporais, geralmente esquecidas pela supremacia da expressão facial. Copeau buscava encontrar uma máscara que produzisse no ator um estado de neutralidade, de silêncio, de imobilidade.

Seu objetivo era minimizar os processos racionais como elemento analítico do ator. A partir da neutralidade busca um ator-criador. Enquanto Stanislavski inicia do exterior para buscar a organicidade do ator, acreditando na consciência e na razão analítica como caminho para o inconsciente, para Copeau, a minimização da consciência, sem perda do controle, através da neutralidade corporal é o caminho atingir a emoção necessária. Copeau cria o que chama de via negativa. Um método de eliminação onde o diretor-pedagogo suprime os obstáculos do ator, sem enfatizar as ações que funcionam, mas sim, aquelas que não servem à representação ou proposta apresentada. Ou seja, apenas com um simples não o professor indica o que o aluno está fazendo errado, sem dizer o porquê e nem enaltece seus acertos. Desta forma o ator pensa e age sobre a consciência de forma particular, eliminando obstáculos cotidianos para se atingir a consciência extracotidiana. Um estado característico da experiência de possessão/transe.


A máscara neutra (nobre ou didática como também é chamada) possibilita ao ator, movimentos econômicos, precisos, liberando-o do condicionamento dos gestos cotidianos. É uma máscara silenciosa, onde não é permitida a utilização da voz em sua manipulação. Limita o campo visual do ator e faz com que sua respiração seja difícil. Por outro lado, aumenta sua sensibilidade em relação ao espaço, fazendo com que concentração no gestual seja estimulada. Os exercícios de improvisação com esse tipo de máscara são abordados temas relacionados à natureza, animais, cores, e posteriormente direcionado para as relações humanas. Ela é um meio e nunca um fim em si mesma.

Possui uma aparência simples, sem definição de idade ou personalidade. A máscara neutra é o ponto zero, o vazio, é o momento antes da ação. Tudo para ela é descoberta, é novidade, portanto, não age ou reage de modo convencional. Não possui uma expressão particular, nem uma personagem típica: não ri nem chora, não é triste nem alegre, mas pode ser feliz ou infeliz como todos os humanos. Não tem julgamento ou expectativa em relação a nada, vive apenas o momento presente.


Por suas fortes conotações simbólicas e arquetípicas, a máscara exige um suporte filosófico, temático e cultural, colocá-la em cena acreditando que certos atributos (como forma, pintura, textura) são suficientes para transformá-la em personagem é um engano. Num primeiro impacto, causa estranheza e admiração, mas aos poucos torna-se repetitiva. Não se deve com ela reproduzir o cotidiano como tal. É outro ritmo, outras as suas condições. Usá-la em cena para fazer o que uma pessoa usualmente faz sem transposição teatral, acaba se criando apenas o anedótico e essa não é sua função dramática. (AMARAL, 2002:75-76).

Para Jacques Lecoq (1921-1999) é um objeto singular e propõe a sensação física da calma. Desta forma o ator sente este estado de neutralidade que precede a ação, um estado de receptividade ao que nos cerca. Para Lecoq (2010:69) trata-se de uma máscara de referência, uma máscara de fundo, uma máscara de apoio para todas as outras máscaras.

A máscara neutra desenvolve essencialmente, a presença do ator no espaço que o envolve. Ela o coloca em estado de descoberta, de abertura, de disponibilidade para receber, permitindo que ele olhe, ouça, sinta, toque as coisas elementares, no frescor de uma primeira vez(...) Um personagem tem conflitos, uma história, um passado, um contexto, paixões. A máscara neutra, ao contrário, está em estado de equilíbrio, de economia de movimentos. (LECOQ, 1997: 71).


                Um dos grandes pontos de discussão neste tipo de máscara é o estado de neutralidade, que fundamentada em princípios comuns, o neutro para um pode não ser a mesma coisa para outro. A neutralidade para (SABINO. 2006:117) refere-se também a uma atitude interna, e não a um indivíduo, e relaciona-se às ações ou atitudes que Bari Rolfe denomina universais. Dessa forma distancia-se da psicologia de um indivíduo, e busca substrato comum a todos e não o particular. Há um desafio às identidades, no sentido de desvesti-las de suas peculiaridades, as quais envolvem características étnicas, culturais, sociais, emocionais e psicológicas. O exercício da máscara neutra requer apreensão de humildade, porém não se trata de subserviência ou de anulação, mas de exercitar para exercer o ser. O estado neutro, mais do que um estado interessante para cena é, principalmente, um estado para o ator.

Trabalhar com a máscara neutra é iniciar uma jornada árdua, de disciplina, de desapego do “eu”, de contínuas descobertas das potencialidades corporais, seja para o ator que vai trabalhar ou não com a máscara em cena. O trabalho com máscara é estar constantemente em contato com a persona e a sombra. Para Jung (1875-1961) a persona é um fenômeno coletivo, um impulso natural no desenvolvimento psíquico, é a "máscara" ou máscaras sociais utilizadas para a adaptação ao coletivo, que surge em resposta às exigências externas, à necessidade de aceitação e reconhecimento do indivíduo pelo grupo. Por causa dessa adaptação surge um processo de repressão de potencialidades, sentimentos, desejos e tendências. Estes conteúdos reprimidos depositam-se na sombra, o que significa que, portanto, encontraremos na sombra todos os conteúdos negados pela consciência. A máscara neutra é  apenas o começo de um caminho para a expressividade. Um caminho longo, mas transformador.

Referência bibliográfica

AMARAL, Ana Maria. O ator e seus duplos - máscaras, bonecos e objetos. S. Paulo: SENAC, 2002.
ICLE, Gilberto. O ator como xamã. São Paulo. Perspectiva, 2006.
LECOQ, Jacques. O corpo poético. São Paulo: SENAC, 2010.
COSTA, F.S. A outra face: A máscara e a (trans) formação do ator. (Tese Livre Docência), São Paulo, ECA/USP, 2006.
LOPES, Elizabeth Pereira. A máscara e a formação do ator. Campinas: Tese-Doutorado, Unicamp, 1991.






Sobre o núcleo

Desde setembro de 2008, o Núcleo de Máscara da ELT trabalha de modo colaborativo na pesquisa da linguagem da máscara, sob os aspectos teóricos, estéticos, históricos, geográficos e culturais. O trabalho parte da prática, que sempre tem como fio condutor o jogo teatral.
De uma forma bem aberta, investiga as diversas máscaras existentes, suas linhas, seu jogo, suas regras e dramaturgia. Confeccioná-las, experimentá-las, portá-las e, a partir destas experiências, criar outras.

Coordenação: Cuca Bolaffi - formada pela L'École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq (Paris), com especialização na linguagem da máscara, atriz, diretora e mestra da Escola Livre de Teatro.

NÚCLEO DE MÁSCARAS ELT

Escola Livre de Teatro - Praça Rui Barbosa, 12, Santa Terezinha - Santo André/SP

(Próxima a estação de trem Prefeito Saladino)

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